9: A Visita ao Veterinário (Ou: Porque É Que os Humanos Pagam Para Me Torturar?)
- Lara Alves
- 13 de ago.
- 6 min de leitura
O Pressentimento (Ou: Quando a Caixa de Plástico Aparece Como Um Presságio da Perdição Eterna)
Lá estava ela. Parada no corredor, como um monumento ao sadismo humano: a infame "caixa de plástico" com grades. Aquele sarcófago portátil, esse artefacto de tortura medieval que os meus captores, na sua infinita hipocrisia, ousam chamar de "transportadora". O cheiro era inconfundível: uma névoa nauseabunda de medo ancestral misturado com desinfetante barato e lágrimas felinas secas. Um odor que gritava "Foge enquanto podes!".
— Salsichinha, minha princesa! Hoje é dia de aventura! Vamos ao veterinário! — trinava a Lara, com um sorriso de quem acabou de ganhar o Euromilhões, ignorando solenemente o meu pelo todo em pé e o rabo em forma de vassoura.

Veterinário. A palavra ecoou nas minhas orelhas como um grito de banshee. Tradução direta para felinês: "Inferno com cheiro a ração húmida rançosa". Instantaneamente, flashbacks de histórias de terror contadas ao luar por gatos de rua martelaram-me o cérebro: agulhas do tamanho de canos, termómetros em sítios que nem Deus conhece, e o pior de tudo… carícias forçadas com voz de bebé. Horror puro.
Tática de sobrevivência ativada: desaparecer. O espaço entre o frigorífico e a parede é o meu santuário, o meu bunker antinuclear. Depois... no armário atrás dos livros e depois, debaixo da cama. Que tentem, humanos. Que tentem.

A Arte da Fuga (Ou: Como Ser Uma Sombra Indetetável Por Uma Eternidade (ou 45 Minutos, Que É Quase o Mesmo))
A perseguição começou. Os humanos, movidos por um entusiasmo doentio, lançaram a sua artilharia pesada:
Tática 1: Balançar o saco das treats. (Insulto à minha inteligência. Eu não sou o Rodrigo, esse pateta que troca a dignidade por um biscoito seco. Além disso, treats de veterinário? Isso é isco envenenado.)
Tática 2: Chamar-me com voz de bebé, extra-aguada. ("Quem é a minha menina liiiiiinda? Quem é? É a Saalsichiiinha?"). Mais ofensivo que um pum em espaço confinado. O desespero humano cheira mal.
Tática 3: O Álvaro a rastejar pelo chão da sala, imitando um lagarto epilético. (Cena digna do pior teatro amador. Patético ao ponto de ser embaraçoso. Quase que me apeteceu dar-lhe uma treat por pena.)
Resisti como uma estátua de granito coberta de pelo. Um monumento à resistência felina. Até que… cometeram um crime de guerra. Trouxeram a pistola de água.
— Isto é uma violação flagrante da Convenção de Genebra! — gritei eu, enquanto disparava debaixo da cama como um míssil, o coração a bater mais rápido que as patas do Rodrigo a perseguir uma mosca. — Guerra química! Salvem-se quem puder!
(Nota mental: investigar se a ONU tem um departamento para crimes contra gatos.)
A Viagem (Ou: Como Sobreviver a Uma Viagem Num Caixão Metálico Que Treme e Cheira a Música Pimba)
Encurralaram-me. Usaram luvas de forno (a covardia!). Enfiaram-me à força naquele caixão de grades. O horror era palpável. O cheiro a plástico e terror prévio quase me fez desmaiar.
Dentro da nave infernal (o "carro"), o Álvaro, num ato de crueldade psicológica extrema, ligou o rádio. Música pimba. Aquele cancioneiro alegre e brejeiro que soa como gargarejos de um ogre bêbado. O motor roncava como um dragão com asma. A estrada era uma montanha-russa para condenados. E o meu estômago, nobre e sensível, revoltou-se.
— Blurgh! — (Tradução: "Toma, brutos! Primeira salva!").
— Salsicha, não! Para com isso! — guinchou a Lara, a brandir um lenço de papel como se fosse a bandeira da rendição num campo de batalha lamacento.
Oh, agora preocupam-se? Pensei, com cinismo gelado. Onde estava essa compaixão quando me enfiaram neste cárcere móvel ao som de "A Garagem da Vizinha"? Vingança é um prato que se serve… repetidamente. — Blurgh! — Segunda salva. Estrategicamente direcionada para o tapete do passageiro. Que limpem. É o mínimo.
O Inferno na Terra (Ou: A Sala de Espera: Sala de Exposição de Neuroses Animais)
A clínica. Um antro. O ar estava tão carregado de pânico que se podia cortar com uma unha. Cheirava a desespero canino, a gato suado, e a um fundo persistente de… cão molhado. Um aroma que gruda na alma. O cenário:
Um coelho branco: Tremia como gelatina num terramoto, os olhos esbugalhados a gritar "Fui traído!". Parecia ter visto o fantasma da cenoura que comeu na vida passada.
Um papagaio cinzento: Empoleirado num pau, descascava palavrões em alemão gutural. "SCHWEINHUND! VERFLUCHT!". Provavelmente um refugiado linguístico de um bar de marinheiros em Hamburgo. Respeitável, mas barulhento.
O Rodrigo, claro: O labrador pateta, abanando o rabo com força suficiente para gerar energia eólica, babando-se de alegria ingénua para toda a gente. Um idiota útil.
— SALSICHAAAAAAAA! — ladrou ele, com um entusiasmo que doía nos ouvidos, felicíssimo por me ver partilhar da sua humilhação semanal. — Olá colega de prisão! Não é fixe? Cheira a medo!
— Rodrigo — rosnei eu, com a voz mais baixa e ameaçadora que um gato enfurecido consegue produzir (o que é bastante), — se não calares essa tromba imediatamente, juro pela minha cauda que hoje jantas ração de gato da marca mais barata. E sonhas com gatos a rir-se de ti.
Ele encolheu-se, emitiu um ganido agudo e calou-se. Finalmente. Um momento de paz conquistada através do terror psicológico. Delicioso.

O Carrasco de Avental Branco (Ou: O Homem Que Acha Que Sou Um Peluche Com Órgãos Internos)
Entrou ele. O Veterinário. Um colosso de avental branco imaculado (provavelmente para esconder as manchas de sangue das suas vítimas), dedos frios como garras de gelo, e um sorriso que não chegava aos olhos. Um sorriso de serial killer de brinquedos.
— Olá, Salsichinha! Que lindinha! — começou ele, num tom de falsete enganador, enquanto me tirava da jaula com uma suavidade suspeita. — Hoje vamos só dar uma olhadela rápida, está bem? Ver se está tudo a funcionar direitinho!
"Olhadela". A palavra mais enganadora da língua humana. "Olhadela" traduz-se para: "Vou enfiar-te coisas em orifícios que preferias manter privados, espetar-te com agulhas, esmagar-te órgãos vitais e apalpar-te como se fosses pão de ló, tudo enquanto faço comentários inane sobre o tempo".
Lutei. Bufei como um dragão em miniatura. Gritei em Felinês Avançado:
— Assédio! Tortura! Violação dos meus direitos felinos fundamentais! Chamem a PSP (Polícia de Segurança dos Pelis - sim... de quem tem pelos)!
Ele riu-se. RIU-SE. Um riso alto e falso que ecoou pela sala fria como o tilintar de algemas.
— Olha que energia! Que personalidade! — comentou ele, alegremente, enquanto eu, imobilizada pela traição das mãos da Lara, o encarava com olhos que prometiam morte lenta e dolorosa. — Muito saudável! — (Saúde, para ele, claramente significava "vontade de te arrancar os olhos"). Planeava mentalmente o seu desaparecimento. Um acidente com a balança? Envenenamento por ração dietética? As opções eram variadas.

A Liberdade (e a Vingança Silenciosa e Peluda)
Milénios depois (ou 20 minutos, que no fundo é a mesma coisa), sobrevivi. Os humanos, talvez atacados por um fugaz sentimento de culpa, levaram-me para casa num silêncio respeitoso (ou talvez apenas nauseado), cheios de mimos pegajosos e guloseimas "especiais" que cheiravam a remorso e peixe duvidoso.
Mas a Dona Rosa Salsicha Ramos Alves Costa não esquece. Nem perdoa. Especialmente quando a sua dignidade foi pisada com avental branco e luva de látex.
Então, à noite, enquanto os meus carcereiros dormiam o sono dos injustos (e dos que limparam vómito de carro), executei a minha vingança. Silenciosa. Elegante. Impecável. Rastejei até à câmara de tortura principal (o quarto deles). Escolhi o alvo: o Álvaro, cúmplice direto no crime da transportadora. E, com a precisão de um cirurgião (um cirurgião vingativo), deixei-lhe um presente magnífico no centro exato do seu nariz adormecido: um único pelo meu, comprido, sedoso e inconfundivelmente preto.

Moral da história (porque os humanos precisam sempre de moral, como precisam de coleiras ridículas)?
Humanos: Acreditam piamente que nos "protegem" ao pagar para sermos torturados por sádicos licenciados. A sua capacidade de autoengano é verdadeiramente impressionante.
Veterinários: São sociopatas com diplomas em parede e mãos frias. Escondem-se atrás de sorrisos e termos como "prevenção". Não se deixem enganar.
Eu, Dona Rosa Salsicha: Sou invencível. Sobrevivi ao caixão, ao pimba, ao Rodrigo, e ao Carrasco de Dedo Gelado. Mas fiquem avisados, humanos: Se me tocam outra vez com aquela coisa fria nas orelhas, ou se a palavra "veterinário" for sequer sussurrada neste domicílio, juro pela minha última treat que arranho o sofá de pele sintética até ele se transformar num monte de pó irreconhecível. E depois vou mijar nas vossas pantufas. Testem-me.
Continua...
Próximo Capítulo: Episódio 10: O Roubo do Frango (Ou: Como Derrotei um Passaroco no Telhado Para Defender Meu Almoço). Onde a Dona Rosa Salsicha enfrenta aves carniceiras com olhos de saqueador, prova que a ganância não tem limites (especialmente quando envolve peito de frango), e descobre que até um telhado inclinado pode ser o palco perfeito para um duelo épico entre Fome e Penas.
😼 Nota Oficial da Autora (e Porta-Voz da Dona Rosa Salsicha): A Dona Rosa Salsicha nega veementemente e com desdém qualquer sugestão de "trauma pós-veterinário". Afirma, com a serenidade de uma rainha, que a visita foi "um exercício tático de reconhecimento do inimigo e das suas instalações". Quanto aos vómitos estratégicos dentro do veículo humano? Meros "exercícios avançados de desintoxicação e reequilíbrio gástrico", realizados por escolha própria e com precisão cirúrgica. Qualquer outra interpretação é fruto de imaginação humana pobre ou má-fé canina. A dignidade felina permanece intocada. (O pelo no nariz do Álvaro foi um presente. Deixem de ser mal-agradecidos.)



Esta gata é diabólica mas também divertida.
Fico à espera das novas aventuras felinas
É super engraçado e fixe. A dona rosa é muito resmungona e tem a mania que é a rainha!